segunda-feira, 14 de novembro de 2011

VER-TE DESAPARECER

O inevitável aconteceu.
Após tanto tempo, a sorte tinha que acabar.
Os dois deitados no asfalto frio e molhado. O ar de noite fica tão gelado que o vapor condensa no instante que expiramos.
Eu sei que estou bem. Quer dizer... Quando se pode estar bem, após um ataque de um drogado a alucinar e a ameaçar-nos com uma faca: uns cortes aqui e ali, nada de preocupante.
Também sei que ele não está bem. Se bem que tenho a sensação de esta descrição fica muito aquém do estado dele. Basta mexer a minha mão na direcção dele e apercebo-me que há um líquido quente junto dele e se esforçar a vista com a pouca luz que consigo ter da lua, e de algumas luzes ao fundo da rua, esse líquido é vermelho. Não preciso de fazer isto, mas sei-o. Ainda assim, ele continua a respirar ritmicamente, como se nada se passasse.
"Que noite!" A voz rouca dele é a primeira a fazer-se ouvir desde o ataque. Eu ainda não encontrei a minha. "E eu a pensar que isto só acontecia nas séries que me obrigas a ver." E ri-se. Ao mesmo tempo, algo no meu peito contrai-se até doer. Algo que não consigo explicar.
Ainda nem sequer o olhei nos olhos e ele está ali a (tentar) fazer piadas. "O que achas?"
O que acho? Acho que algo de muito errado se está a passar dentro da tua cabeça. "Acho que o INEM não percebe o significado da palavra emergência."
"Porque estás tão chateada?" Sinto a mão dele ainda quente a apertar um pouco a minha. "Nem parece teu."
Com cuidado viro a cabeça de maneira a estarmos cara-a-cara. "A sério? E o que é que parece meu?"
"Gozar com a situação." Ri-se mais um bocado, mas o esforço fá-lo tossir forçando mais algum sangue a sair da ferida que lhe atravessa quase metade do abdómen. "Usares e abusares do sarcasmo, deixando todos... Sem palavras. Sem saber o que fazer."
"Não tenho muita vontade disso, agora." O nó que sinto na garganta parece piorar a cada segundo. "Ainda estás a fazer pressão?"
"Não tenho muito mais que fazer." Com a mudança de tema para ele, já não tem tanta vontade de se rir. "Mas, não me parece que vá fazer muita dife-"
"É que nem te atrevas a acabar essa frase!" Gritei e arrependendo-me logo de seguida, mal senti as náuseas a voltarem.
Aparentemente, ele aproveitou-se disso para voltar a falar de mim. "Bateste com a cabeça com demasiada força, não devias fazer esforços. Muito menos para gritar comigo."
"Sim, Sr. doutor." Disse sem pensar muito, nisso. A única coisa a ocupar o meu pensamento era mantê-lo a falar comigo. Só não sabia quanto tempo ainda conseguia... A mão dele está demasiado fria.
Ele suspira e, pela primeira vez, oiço a falha de ritmo na respiração que ele tem tentado controlar. "Estou a entrar em choque..." É verdade. Está a tremer muito. "Acho que já nã-"
Fecho os olhos numa tentativa de ignorar o que ele me quer dizer. "Não comeces outra vez."
Eu tento ignorá-lo e ele ignora-me. "Já não aguento muito mais." Os olhos dele humedecidos seguem os meus. Está tão fixado que tenho medo que consiga ler todos os meus pensamentos. "Desculpa."
Não tenho força para afastar o meu olhar do dele. "Porquê? Não me lembro de nada de mal que tenhas feito. Salvaste-me a vida... Pondo a tua em risco." Continuei a fingir-me desentendida sobre o que sabia estar por detrás da desculpa dele: Desculpa, ter salvo a tua vida com a minha.
Ele sabe que eu sei o que ele queria dizer, mas deixa passar. "Não te quero deixar sozinha."
Respondi prontamente, com o argumento mais estúpido que alguma vez saiu da minha boca, não ligando ao que racionalmente sabia. "Há uma solução para isso: continua a aguentar-te até a ambulância chegar."
E sou, mais uma vez, ignorada. "Aprende a confiar nos outros... Nunca se sabe quem te poderá surpreender. Tu surpreendeste-me!"
Isso confundiu-me. "Achas que não era de confiança?"
"Não sabia. A maneira como ages deixa as pessoas desconfiadas, tal como tu não confias nelas."
"Eu confio em ti."
"Porquê?"
"Porque és uma pessoa fácil de confiar, sei lá... Falaste honestamente comigo e deste-me uma oportunidade para confiar." Foi a minha vez de lhe apertar gentilmente a mão, agora tão fria como o chão em que estávamos deitados. "Não me deixes assim."
"Não preciso de deixar. Desde que te lembres de mim, estarei sempre contigo."
"De onde foste tirar isso?" Tens mesmo de me fazer sentir que tudo aquilo que sou vai desaparecer contigo. "Sabes que não acredito em nada dessas coisas religiosas. Se me lembrar de ti, as únicas coisas que terei de ti são memórias. Nunca tu."
"Tu não acreditas, mas eu acredito. Acredito que estarei ao teu lado de alguma maneira... Podes não me ver, ou se calhar vês-me como uma árvore, um esquilo, sei lá..."
"Um grão de pó."
Ele fingiu-se ofendido. "Ouch! Estava a tentar ser poético e sentimental."
"E a falhares." Eu já pouco me importava com o que dizia... Já não queria saber de como me faria parecer. Ele nunca se importou com isso, agora também não se importaria. "Estava a seguir a tua lógica cristã. Do pó viestes e ao pó voltarás. Se... Não aguentares, serás um grão de pó."
"Ok. Tens razão, como sempre..." Ficou em silêncio durante algum tempo. A única indicação de que ainda estava vivo era o vapor a sair da boca numa respiração, desde há muito, irregular. "Chegou a hora."
"Não." Antes de ele protestar eu continuei. "Eu percebo. Queres-te despedir. Mas, por favor, não o digas. Se o disseres em voz alta... Eu, eu não sei!" A dor que sentia no peito piorava cada vez mais. E o não saber deixava-me desorientada.
Numa voz muito sumida, ele tentou acalmar-me. "Então, o que preferes fazer?"
"Fingir."
"Fingir?" Quase que lhe sentia o sorriso na voz.
"Fingir." Reafirmei. "Fingir que nada disto se passou. Fazer planos para o futuro."
"Que tal o normal?" As palavras eram ditas carinhosamente. "Tu sugeres as coisas mais malucas que te surgem na cabeça e eu sou arrastado para as situações mais vergonhosas da minha vida."
"O normal soa-me muito bem." Consenti. E assim, comecei a falar de coisas que nem para mim faziam sentido (o que já era dizer muito)... Apenas ideias que surgiam sem ligação. Ele assentia ao meu lado, murmurando ou apenas fazendo um som «hum hum» concordando com tudo. Os dois a olhar para o céu.
A certa altura apercebi-me que já só havia uma nuvem de vapor a formar-se. Não parei de falar idiotices atrás de idiotices, o único som audível na rua, sendo o da minha voz. O meu pior medo seria parar de falar e aperceber-me do silêncio aterrador à minha volta.
De mão dada com o corpo do meu melhor amigo. Enquanto falava, pus-me a pensar de onde chovia, se não havia nuvens no céu.
"Tens os olhos tão azuis como o céu, sabias?"
Resignei-me de que estava a chover do céu, porque explicava as gotas que tinha a escorrer pela cara. Não era a única explicação, mas era a que fazia mais sentido para mim, visto que não chorava desde há 15 anos.
"Não te preocupes com o que eles dizem... Só têm inveja de não serem como tu."
Estava sozinha. Não sabia quanto tempo passaria até voltar a conhecer alguém como ele. Como ele, não. Alguém que acreditasse em mim tal como ele o fez.
"Eu estarei sempre onde precisares."
"Preciso de ti agora." Há quanto tempo estava ali? Já conseguia ouvir as ambulâncias. Seria demasiado tarde para o salvarem? Era, de certeza. "Por favor! Olha para mim! Fala comigo!" A minha garganta estava inexplicavelmente dorida e fazia com que chovesse mais.
Vieram pessoas a correr para o sítio onde estavam. "A ajuda já chegou... Volta para mim!" Apertei com mais força a tua mão gélida. "Porque é que não estás aqui? Porque me deixaste sozinha?"
"Estarei sempre contigo."

sexta-feira, 11 de novembro de 2011